
Como fazer?
Como chegar até ela?
Tão linda, naquela palidez mortiça!
As olheiras só realçam o verde dos olhos, e a magreza, uma aura de
fatalidade que me enlouquece!
Será que ela sabe?
Parece que nem nota as pessoas ao redor, médicos, enfermeiras, visitas,
flores.
E sua imobilidade torna-a frágil, traz a minha violência à tona.
Eu fico
horas ali, olhando para ela, só controlando a vontade de machucá-la, de ver seu
sangue escorrer, de quebrar os ossos do seu rosto com minhas próprias mãos, louco
para ouvir seus gritos e estalos, e ver suas lágrimas.
As lágrimas
que teriam o brilho de diamantes, e se misturariam ao sangue, e se
transformariam em rubis...
Seus olhos parados, fitando o teto. Duas esmeraldas opacas,
desesperançadas.
Coma.
Não, ela não sabe.
Hoje, faz cinqüenta anos que ela morreu.
Seu espectro ainda está naquele quarto, na mesma cama desativada, formando
uma eterna mancha escura no colchão esburacado.
Sua alma
presa ao presente, sem entender ou sentir.
Seu corpo
já deve ser só ossos.
Anônimo.
Silencioso.
Branco e
casto.
Noiva.
Sua voz,
calada, é só eco na minha memória.
Ela já foi
carne.
Hoje, é
sombra.
E eu estou aqui, esperando.
Esperando
que ela volte.
Escrevendo
e escrevendo.
As pilhas
de papel se acumulando, a caneta arranhando, ruído interminável, insuportável,
ensurdecedor.
Tenho todo
o tempo do mundo.
Tenho a
eternidade.
Posso
escrever para sempre.
Quando ela
acordar, saberá.
Quando ela
acordar, entenderá.
Nada mais
de solidão, dor ou medo.
Não ouvirei
mais os gritos dos aflitos e nem verei mais os dedos acusadores apontando pra
mim.
Serei
livre.
Ouvirei,
finalmente, as trombetas do paraíso.
Não verei
mais o desfile dos infelizes, perdidos, mutilados.
Não terei
mais que sentir o olhar indiferente dela, pois ela será luz novamente,
benevolência e doçura.
Farei com que saibam que ela é linda, e não putrefata.
Farei com que entendam o que é o amor, irradiado direto do
coração de um anjo.
O que é brancura comparada à beleza irradiada das asas dela.
Perdão e paraíso.
O canto dos anjos soará desafinado quando sua voz soar pelos
céus, aos gritos, agonia e dor.
Ela será minha, então.
E eu quebrarei todos os seus ossos novamente, um a um.
Sentirei os estalos, em regozijo.
Serei um ser completo somente quando sentir os respingos de
sangue em meu rosto, e enterrarei os meus braços no ventre aberto.
Espalharei as vísceras pelo chão, e pintarei as paredes de
rubro.
Comerei o coração ainda pulsante
E não haverá mais agonia em mim.
Roberta
Nunes
29/09/2008
revisto em 08/11/2012
Adaptado de “Desesperança”, conto escrito em 2005 para o grupo
de discussão literária on-line “Cryacontos”.

Cheguei na
cidade no começo da madrugada, naquele horário que não tem ônibus pra lugar
nenhum e você é obrigado a pegar um táxi, bandeira dois, claro, ou entrar num
bar e esperar o dia amanhecer.
Óbvio que,
sem pestanejar, fui de cara na segunda opção.
O bar no
centro, aberto à noite, putas e bêbados-patrimônio, só podia ser daquela
qualidade duvidosa que tanto me agrada.
Vi o
balconista matar uma barata gorda e nojenta com o mesmo pano que ele enxugava
uns copos.
Ri.
Pedi uma
cerveja em lata, pra não precisar de nenhum copo e me sentei numa das mesas do
canto, de frente pra porta.
Um antigo
hábito.
Automaticamente,
uma puta horrorosa, que devia ser prima-irmã da finada barata, se sentou e
começou com o papinho de sempre.
Não sei se foi
a cara dela, ou a roupa suja de sangue seco, a banguela, ou ainda, o cheiro de
bueiro, que me causaram náuseas.
Eu já devia
ter me acostumado, mas existem coisas que ninguém, mas ninguém mesmo, se
acostuma.
Aquele tipo
de degradação era uma delas.
Dispensei a
aberração e me concentrei na minha cerveja.
De repente me
dei conta de que a noite seria longa, pois um sujeito enorme, fedorento e sem
os dentes da frente (mais um!), colocou umas vinte moedas na jukebox, e mandou
ver um disco inteiro de forró-putaria!
Manda um
conhaque, garçom!
Um copo
seboso e trincado, e deixa a garrafa aqui na mesa...
Aqueles
taxistas que não conseguiram pegar nenhum otário, sentados ao lado dos comedores-de-coxinha
de uniforme e, entre uma dose e outra, riam juntos da tal lei seca.
Rostos.
Rostos
esverdeados à luz fluorescente.
Cadáveres que
riam e bebiam e cantavam.
Não havia
nada ali.
Não havia
vida, nem esperança.
Só desespero
e solidão.
E morte.
O retirante
desdentado, a puta-barata, barata aos vinte anos, os policiais semi-alfabetizados,
os taxistas gordos e com problemas de colesterol, o balconista sonolento, eu.
Um bando
curioso.
Circo de
aberrações.
Nada
diferente de centenas de milhares de outros bares no mundo.
Milhões de
antros onde os infelizes e patéticos sacos de carne podre, enquadrados nos
livros de biologia do primário como “superiores por terem polegares opositores”,
generalizados como seres humanos, envenenam suas veias, seus fígados, suas almas.
O desfile de
corações petrificados.
Finalmente,
as fichas da máquina acabaram, e pude ter um vislumbre do paraíso,
materializado no silêncio.
Me levantei e
coloquei uma nota.
Não sabia ao
certo o que escolher, e as opções também não eram das melhores.
Resolvi me
sentar e deixar que a puta escolhesse.
E ela foi.
Saltitante,
como se fosse uma criança que ganha um balão colorido.
Pra ser
sincero, não sei o que era aquilo, se era música ou um novo método de tortura
saída direto do inferno.
Me limitei a
sorrir e ergui a garrafa de conhaque num brinde tosco, e matei os dois dedos
restantes numa talagada só.
Bêbado.
O dia estava
amanhecendo e eu tinha que ir.
Pra onde?
Só caminhar.
Caminhar
pelas ruas cobertas de pó de corações petrificados.
Roberta Nunes
Não entender.
Não saber.
Não ter resposta.
E, olha, eu perguntei.
Várias vezes.
Chamei, e gritei, e implorei.
Só recebi silêncio.
Ou seria desprezo?
Aquele bem pode ser a mesma coisa que este, ter a mesma
medida e a mesma importância, e ser recebido da mesma maneira, com choque, dor,
angústia, frustração.
A intensidade do que não vivemos!
Aquilo que foi embasado em palavras e ideias, intenções,
longe do concreto e palpável, pode ser tão destruidor?
Até onde?
Até quando?
Sob a forma de quimeras, fantasias vãs invadindo a realidade
sólida.
Acordar todos os dias com a certeza de que não saber é pior
do que tudo.
Deitar todas as noites com a certeza de que não entender é
insônia.
Passar os dias com perguntas feitas ao vento, que pode
trazer mil respostas diferentes.
Acho que, no fim, eu só queria ter asas.