quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Desesperança II



Como fazer?
Como chegar até ela?
Tão linda, naquela palidez mortiça!
As olheiras só realçam o verde dos olhos, e a magreza, uma aura de fatalidade que me enlouquece!
Será que ela sabe?
Parece que nem nota as pessoas ao redor, médicos, enfermeiras, visitas, flores.
E sua imobilidade torna-a frágil, traz a minha violência à tona.
Eu fico horas ali, olhando para ela, só controlando a vontade de machucá-la, de ver seu sangue escorrer, de quebrar os ossos do seu rosto com minhas próprias mãos, louco para ouvir seus gritos e estalos, e ver suas lágrimas.
As lágrimas que teriam o brilho de diamantes, e se misturariam ao sangue, e se transformariam em rubis...
Seus olhos parados, fitando o teto. Duas esmeraldas opacas, desesperançadas.
Coma.
Não, ela não sabe.
Hoje, faz cinqüenta anos que ela morreu.
Seu espectro ainda está naquele quarto, na mesma cama desativada, formando uma eterna mancha escura no colchão esburacado.

Sua alma presa ao presente, sem entender ou sentir.
Seu corpo já deve ser só ossos.
Anônimo.
Silencioso.
Branco e casto.
Noiva.
Sua voz, calada, é só eco na minha memória.
Ela já foi carne.
Hoje, é sombra.
E eu estou aqui, esperando.

Esperando que ela volte.
Escrevendo e escrevendo.
As pilhas de papel se acumulando, a caneta arranhando, ruído interminável, insuportável, ensurdecedor.
Tenho todo o tempo do mundo.
Tenho a eternidade.
Posso escrever para sempre.
Quando ela acordar, saberá.
Quando ela acordar, entenderá.
Nada mais de solidão, dor ou medo.
Não ouvirei mais os gritos dos aflitos e nem verei mais os dedos acusadores apontando pra mim.
Serei livre.
Ouvirei, finalmente, as trombetas do paraíso.
Não verei mais o desfile dos infelizes, perdidos, mutilados.
Não terei mais que sentir o olhar indiferente dela, pois ela será luz novamente, benevolência e doçura.
Farei com que saibam que ela é linda, e não putrefata.
Farei com que entendam o que é o amor, irradiado direto do coração de um anjo.
O que é brancura comparada à beleza irradiada das asas dela.
Perdão e paraíso.
O canto dos anjos soará desafinado quando sua voz soar pelos céus, aos gritos, agonia e dor.
Ela será minha, então.
E eu quebrarei todos os seus ossos novamente, um a um.
Sentirei os estalos, em regozijo.
Serei um ser completo somente quando sentir os respingos de sangue em meu rosto, e enterrarei os meus braços no ventre aberto.
Espalharei as vísceras pelo chão, e pintarei as paredes de rubro.
Comerei o coração ainda pulsante
E não haverá mais agonia em mim.

 
Roberta Nunes
29/09/2008
revisto em 08/11/2012
Adaptado de “Desesperança”, conto escrito em 2005 para o grupo de discussão literária on-line “Cryacontos”.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Corações Petrificados

Cheguei na cidade no começo da madrugada, naquele horário que não tem ônibus pra lugar nenhum e você é obrigado a pegar um táxi, bandeira dois, claro, ou entrar num bar e esperar o dia amanhecer.
Óbvio que, sem pestanejar, fui de cara na segunda opção.
O bar no centro, aberto à noite, putas e bêbados-patrimônio, só podia ser daquela qualidade duvidosa que tanto me agrada.
Vi o balconista matar uma barata gorda e nojenta com o mesmo pano que ele enxugava uns copos.
Ri.
Pedi uma cerveja em lata, pra não precisar de nenhum copo e me sentei numa das mesas do canto, de frente pra porta.
Um antigo hábito.
Automaticamente, uma puta horrorosa, que devia ser prima-irmã da finada barata, se sentou e começou com o papinho de sempre.
Não sei se foi a cara dela, ou a roupa suja de sangue seco, a banguela, ou ainda, o cheiro de bueiro, que me causaram náuseas.
Eu já devia ter me acostumado, mas existem coisas que ninguém, mas ninguém mesmo, se acostuma.
Aquele tipo de degradação era uma delas.
Dispensei a aberração e me concentrei na minha cerveja.
De repente me dei conta de que a noite seria longa, pois um sujeito enorme, fedorento e sem os dentes da frente (mais um!), colocou umas vinte moedas na jukebox, e mandou ver um disco inteiro de forró-putaria!
Manda um conhaque, garçom!
Um copo seboso e trincado, e deixa a garrafa aqui na mesa...
Aqueles taxistas que não conseguiram pegar nenhum otário, sentados ao lado dos comedores-de-coxinha de uniforme e, entre uma dose e outra, riam juntos da tal lei seca.
Rostos.
Rostos esverdeados à luz fluorescente.
Cadáveres que riam e bebiam e cantavam.
Não havia nada ali.
Não havia vida, nem esperança.
Só desespero e solidão.
E morte.
O retirante desdentado, a puta-barata, barata aos vinte anos, os policiais semi-alfabetizados, os taxistas gordos e com problemas de colesterol, o balconista sonolento, eu.
Um bando curioso.
Circo de aberrações.
Nada diferente de centenas de milhares de outros bares no mundo.
Milhões de antros onde os infelizes e patéticos sacos de carne podre, enquadrados nos livros de biologia do primário como “superiores por terem polegares opositores”, generalizados como seres humanos, envenenam suas veias, seus fígados, suas almas.
O desfile de corações petrificados.
Finalmente, as fichas da máquina acabaram, e pude ter um vislumbre do paraíso, materializado no silêncio.
Me levantei e coloquei uma nota.
Não sabia ao certo o que escolher, e as opções também não eram das melhores.
Resolvi me sentar e deixar que a puta escolhesse.
E ela foi.
Saltitante, como se fosse uma criança que ganha um balão colorido.
Pra ser sincero, não sei o que era aquilo, se era música ou um novo método de tortura saída direto do inferno.
Me limitei a sorrir e ergui a garrafa de conhaque num brinde tosco, e matei os dois dedos restantes numa talagada só.
Bêbado.
O dia estava amanhecendo e eu tinha que ir.
Pra onde?
Só caminhar.
Caminhar pelas ruas cobertas de pó de corações petrificados.

Roberta Nunes
 

terça-feira, 18 de setembro de 2012

http://caadoradeimagens.blogspot.com.br/

Não entender.
Não saber.
Não ter resposta.
E, olha, eu perguntei.
Várias vezes.
Chamei, e gritei, e implorei.
Só recebi silêncio.
Ou seria desprezo?
Aquele bem pode ser a mesma coisa que este, ter a mesma medida e a mesma importância, e ser recebido da mesma maneira, com choque, dor, angústia, frustração.
A intensidade do que não vivemos!
Aquilo que foi embasado em palavras e ideias, intenções, longe do concreto e palpável, pode ser tão destruidor?
Até onde?
Até quando?
Sob a forma de quimeras, fantasias vãs invadindo a realidade sólida.
Acordar todos os dias com a certeza de que não saber é pior do que tudo.
Deitar todas as noites com a certeza de que não entender é insônia.
Passar os dias com perguntas feitas ao vento, que pode trazer mil respostas diferentes.
Acho que, no fim, eu só queria ter asas.